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Críticas

Filme"Impermanência"

O carpinteiro e sua arte

 

Texto de Marco Fialho

 

Uma das possibilidades instigantes presente no gênero documentário é o de trazer à luz temas e personagens importantes que muitas vezes estão à sombra do grande público. Esse é o caso de "Impermanência", do diretor Guto Neto, ao propiciar um mergulho no processo criativo do dançarino e coreógrafo Márcio Cunha. O filme de Guto é de uma sensibilidade tocante e inteligente na maneira de conduzir o personagem e de revelar o seu profundo trabalho.

 

Um das felicidades de "Impermanência" como documentário é o de abrir mão de tentar abarcar a vida e obra de Marcio Cunha, não se almeja aqui destrinchar detalhes da carreira, mas sim expor alguns momentos de seu processo, em especial a intensidade na qual o coreógrafo se entrega a cada espetáculo. Guto Neto consegue extrair de Márcio a sua essência como encenador brilhante que é, vai fundo no processo do artista em perscrutar a dor como exercício de amadurecimento pessoal, atribuindo a dor um sentido sensorial e como um momento dialógico dos personagens com o mundo. Assim, Márcio Cunha levou ao palco Basquiat, Frida Kahlo e Bispo do Rosário, artistas que viveram de suas dores, que a transformando em arte.

 

"Impermanência" consegue ir no cerne da carpintaria cênica de Márcio Cunha e explora muito bem suas habilidades de artista visual que também é ao construir instalações que interagem com ele no palco. O filme capta com vigor essa artesania do processo, além de registrar momentos em que o coreógrafo dialoga com sua equipe de figurinistas, produtoras e iluminadores. Guto Neto ainda flagra os ensaios corporais de Márcio Cunha, mostrando como incorpora ao corpo diversos processos de vida, músicas e tantos outros momentos de seu passado, seus medos, angústias e dores. 

 

Dentre todos os processos que assistimos, há um destaque especial para a montagem da peça "Rosário", em que Márcio Cunha mergulha (literalmente) na vivência desse artista, morando na colônia manicomial de Bispo do Rosário e se relacionando com um interno que conheceu o artista. Márcio vive, a loucura, a incorpora corporalmente, em um processo muito complexo, marcado por uma intensidade fora do comum. Depois é mais incrível ainda ver o interno integrado a sua peça como um personagem real, o que mostra a coragem e a força cênica sem limites que Márcio Cunha vivencia sempre com plenitude. Me chamou a atenção a obra em que Rosário realiza um inventário do mundo para entregar para Deus quando ele retornar à Terra, esse aspecto humano de querer participar de algo grandioso e que só a arte pode sobejar. Mas nota-se o quanto esse processo de 'Rosário" é uma viagem em si mesmo e Guto Neto se mostra muito atento a tudo que cerca o seu objeto de estudo. 

 

Um dos momentos mais brilhantes do filme é quando Guto Neto captura uma imagem do interno da Colônia Juliano Moreira a perguntar para a câmera: "quem é você?" Sim, porque o filme é sobre isso, sobre o processo de autoconhecimento de Marcio Cunha e Guto Neto, como diretor, percebe instantes valiosos que possibilitam se apreender melhor essa pergunta. Guto costura na edição algo muito representativo e recria a cronologia artística de Márcio Cunha sem ser didático, o que torna o filme instigante a todo momento. Há uma trajetória alinhavada nessa carreira, uma pesquisa implacável da dor nos três primeiros espetáculos: o de Frida Kahlo, o de Basquiat e o de Bispo do Rosário, e depois uma libertação desse processo, com o surgimento de uma fase que caminha para o solar e o popular, em especial a partir de "Homem de Barro". 

 

"Impermanência" é um documentário encantador, que estabelece um diálogo potente com o artista e homem Márcio Cunha, suas dúvidas e coragem na arte, que se esforça em esboçar um certo ordenamento do processo, sem jamais aprisioná-lo em caixinhas definidoras ou definitivas. O filme se parece muito com o seu personagem, tem seus momentos introspectivos, suas buscas intensas, está impregnado da intensidade do coreógrafo, mas ao final é possível se ter uma ideia de quem é esse personagem e como ele se coloca para o mundo. Há uma consciência da impermanência da arte e do humano e a crença de que a ação artística é necessária como condição de vida. É a arte voando sem deixar rastros visíveis, diz Márcio Cunha quase no final do filme, porém o que fazer com os corações de quem presenciou toda essa força emanada por sua poderosa expressividade nos palcos? A existência desse documentário apaixonado de Guto Neto, de certa forma contradiz o próprio conceito de impermanência preconizada por Márcio Cunha, pois saímos dele contaminados por essa força artística, por esse desejo de grudar o mundo ao seu corpo. Ainda

Filme"Impermanência"

Ideias dançadas em filme.

 

Texto de Carlos Alberto Mattos

 

Márcio Cunha é um dançarino, coreógrafo e artista plástico de atuações impactantes com um corpo que parece não ter peso nem limites. Ele próprio cria seus espaços cênicos, verdadeiras instalações onde arroja suas “ideias dançadas”. Na busca de levar as artes plásticas para o palco, já fez espetáculos a propósito de Frida Kahlo, Jean-Paul Basquiat e Bispo do Rosário. Atualmente circula pelo país com a performance Pipoca, em que alude à capoeira (sua origem) e ao candomblé.

Impermanência é uma ótima introdução a essa figura carismática e sua dança extremamente visceral. O professor e cineasta Guto Neto o acompanhou nos últimos anos, registrando performances e ouvindo seus pensamentos e inquietações sobre arte e espiritualidade. “Sou um espelho refratário das dores do mundo”, ele assim se define.

Nessa toada, Márcio ora parece um monstro expressionista, ora um boneco de barro em transe. Ora sugere uma ave apocalíptica, ora um agonizante coberto de tintas. Por ocasião do espetáculo sobre Bispo do Rosário, contracenou com Arlindo, um ex-interno da Colônia Julio Moreira que conviveu com Rosário. Dessa interação nasceram cenas deveras intrigantes sobre a vida naquela instituição.

Guto se vale de efeitos simples de edição, como sobreposições e telas divididas, para desbravar as camadas do trabalho de seu personagem. O mínimo que se pode dizer do resultado é que dá uma vontade danada de ver Márcio se metamorfosear ao vivo diante de nós.

 Espetáculo: "Casa de Barro"

- Por: Francis Fachetti: Bacharel em artes cênicas(ator). Pós-graduado em Linguagem Teatral. Diretor de Movimento. Coreógrafo. Bailarino. Dançarino de Flamenco e CRÍTICO TEATRAL e de DANÇA.

“Um ritual cênico que evoca a animalidade e a espiritualidade na desconstrução e reconstrução do corpo do intérprete em contato com as metáforas e metamorfoses do barro”.

O Blog/Site de críticas Teatrais e de dança:
ESPETACULO NECESSARIO.COM.BR conferiu e recomenda muito o novo trabalho do diretor, intérprete e dono da criação da nova cena carioca de dança, Márcio Cunha, em cartaz no Sesc Copacabana, de quinta à domingo, até 24/11.

Artista plástico e escultor, que tem um trabalho cênico extremamente peculiar, partindo de suas vivências, pesquisas, e se debruçando em inúmeros projetos contundentes e necessários, como foi seu espetáculo em 2018, sobre BISPO DO ROSÁRIO, de beleza irrefutável, que tive o prazer de resenhar uma crítica, mais do que merecida, e bastante positiva.

“CASA DE BARRO” sua mais nova instalação cênica, se faz mais uma vez necessária, investigando através de pesquisas de artistas plásticos, e principalmente com sua curiosidade sobre nossa sobrevivência, depurada com imensa força dramática, pelas suas relações dança/movimento contemporâneo, recheado de buscas e angústias evidentes em sinapses, ou seja, neurônios e músculos se “excitando” ao extremo, em choques existenciais.

“CASA DE BARRO” se coloca como estímulos, sensações, através da dança, causando reações diversas, criando uma salada sensorial entre o que se vê, olfato, audição, com voluntários e involuntários desenrolar muscular, em coreografia existencialista.

Uma combinação peculiar de distintas possibilidades cênicas, que Márcio Cunha carrega em cena colérica, e enorme onipresença corporal, em proposta existencial, vital, real e particular. Bravo!
Destaco ainda o encontro perfeito da proposta, com a belíssima iluminação de Juca Baracho, assim como a trilha sonora de Leonardo Miranda e Márcio Cunha, que evoca totalmente a animalidade e a espiritualidade construídas em movimentos africanos mesclados com outras influências corporais, na entrega de alma de seu intérprete.

Um espetáculo do barro para o corpóreo, para uma alma encharcada do sensorial, em inquietudes, urgências, metáforas e metamorfoses;
“CASA DE BARRO”.

Espetáculo NECESSÁRIO!
– Super RECOMENDO! Assistam!

Espetáculo NECESSÁRIO.

Um dos 20 melhores espetáculos de 2019!

 Espetáculo: "Casa de Barro"

- Por: Wagner Corrêa de Araújo:  É jornalista especializado em cultura, roteirista e diretor de programas de tv, critico de artes cênicas. - Jurado dos Prêmios de Teatro 2017 - Botequim Cultural e APTR (Associação dos Produtores Teatrais).

No final dos anos 70, integrando a coordenação artística do Palácio das Artes (BH) testemunhei uma das mais viscerais performances plásticas já vistas em sua Grande Galeria, tendo como substrato material uma urna/ útero de barro de onde era gerado o corpo/feto da artista plástica Celeida Tostes.

 

Três décadas depois reencontro um referencial daquele momento de inventividade ímpar na proposta coreográfica do performer, coreógrafo e artista plástico Márcio Cunha – Casa de Barro.

 

“Cobri meu corpo de barro e fui / Entrei no bojo do escuro, ventre da terra/O tempo perdeu o sentido do tempo/Cheguei ao amorfo”...

 

Como nos versos que serviam de mote para a apresentação da ceramista carioca, Márcio Cunha realiza um ritual de celebração da corporeidade.Despojando-se numa imersão de fisicalidade, através do barro informe e cru, elemento geológico metaforizando o ser e o não ser, entre a ancestralidade e o tempo futuro. 

Numa proposta sequencial do encontro da linguagem coreográfica com a criação plástica, desenvolvida com incisiva instintividade nas suas três últimas obras, em arrojada releitura gestual do icônico legado artístico de Frida Kahlo, Basquiat e Bispo do Rosário.

 

Na recorrência a uma paisagem plástica moldada num espaço cênico com elementos de barro e plástico circundada, frontal e lateralmente, por objetos fragmentários de cerâmica, como se reproduzisse um imaginário recorte arqueológico imemorial, de um tempo além do tempo.

 

Numa pulsão provocadora palco-plateia, artista-espectador, sustentada por certeiras sonoridades primitivo-tribais no entremeio de ecos da natureza, presenciais nos acordes afro-brasileiros de canções e fraseados indigenistas/religiosos (do repertório de Gilberto Gil e Virginia Rodrigues).

 

Que se estendem à espontaneidade com que Márcio Cunha imprime, em linguagem corporal seca e direta, com perceptível nuance introspectiva, a concentração dramático-coreográfica necessária para um artista múltiplo (bailarino, coreógrafo, performer, escultor) dar o seu recado estético-reflexivo.

 

De transes humanos entre a manipulação do barro e as pausas psicofísicas de silêncio, às vezes fazendo uso de histriônicas expressões faciais de surpresa, tensão e assombramento diante dos insondáveis mistérios de sua origem e destinação.

 

Com o olhar armado no seu instigante questionamento como artista e criador e no medo, como homem e ser político, diante da trajetória instável de certa Nação, aqui e agora, sendo moldada tal qual uma "casa de barro"...

 

                                             Wagner Corrêa de Araújo

 Espetáculo: "ROSÁRIO"

- Por: Francis Fachetti: Bacharel em artes cênicas(ator). Pós-graduado em Linguagem Teatral. Diretor de Movimento. Coreógrafo. Bailarino. Dançarino de Flamenco e CRÍTICO TEATRAL e de DANÇA.

O COREOGRAFAR EM COMPASSOS CORPORAIS E EMOCIONAIS, DAS OBRAS VISUAIS/PLÁTICAS, DE UMA LOUCURA EM GENIALIDADE ARTÍSTICA.

A dança contemporânea, encerra a trilogia sobre grandes nomes das artes visuais(FRIDA KAHLO, JEAN-MICHEL BASQUIAT e BISPO DO ROSÁRIO), criada pelo bailarino, coreógrafo e artista plástico MÁRCIO CUNHA.
Em cartaz no Sesc Copacabana: "ROSÁRIO", espetáculo sobre o universo do artista plástico brasileiro/nordestino, ARTHUR BISPO DO ROSÁRIO, hoje, reconhecido internacionalmente, pela sua obra vanguardista, feita a partir de "lixos, sucatas e descartáveis".
A linguagem dos movimentos/dança, impulsionou MÁRCIO CUNHA a desvendar vida e obra do BISPO, que foi diagnosticado com esquizofrenia, e passou 50 anos internado na colônia psiquiátrica Juliano Moreira/Jacarépagua, onde em meio às suas loucuras, ânsias, crenças, devaneios, intuições, dores, choques elétricos e agressões, construiu um legado muito peculiar/particular/intuitivo, sobre sua visão do mundo. Obras confeccionadas em coloridos intensos, criações visuais, mais tarde reconhecida pelo mundo.
Para criar o espetáculo, o coreógrafo, submergiu sua sensibilidade, vivendo como interno da colônia psiquiátrica, em uma residência, onde esse fundamental contato, o ambiente com outros internos, proporcionou-lhe cabedal de visceralidade única. 
Criou à concepção, coreografias, direção, e sendo o intérprete de "ROSÁRIO". Assistente de direção JULIANA NOGUEIRA.
Leva à cena dessa criação multifacetada, expressiva e tocante, em estrutura coreográfica/dança, contando com um dos internos da colônia, ARLINDO, artista que chegou a conhecer BISPO DO ROSÁRIO, em um trabalho visual, muito similar com o do BISPO. 
ARLINDO, dá importante visibilidade ao espetáculo, permeando toda à cena, em presença que nos remete a um "mentor" do desembaraçar cênico.
MARCIO CUNHA criou em seus movimentos coreográficos às sensações e os anseios delirantes contidos nas obras do artista plástico. Gestuais que buscam retratar à exclusão do artista, por uma sociedade que o renegou, suas dores físicas e d'alma, e sua criatividade artística.
Montou uma instalação cênica, junto com à artista SILVIA ARAÚJO. Interage em vísceras com a potência dessa instalação, e a partir dela, o refletir pertubador na essência visual/intuitiva do BISPO.
A dança, como força motora de um trabalho de múltiplos recursos; artes plásticas, teatro, dança, música, em confluência, e se alimentando, entrelaçando e potencializando à arte, tendo como inspiração uma das maiores sensibilidades, na época tratado como louco/incapaz/inútil. Em sua "demência" e genialidade, o sergipano ARTHUR, revolucionou em obras feéricas/deslumbrantes. Faz das artes plásticas brasileira, um épico acontecimento, apesar de ter sido tão vilipendiado/ultrajado.
Dentro do valioso legado do BISPO, o coreógrafo MARCIO CUNHA, evidência na cena corporal, às danças populares que ficam intrínsecas no desenrolar compassado, de movimentos típicos do maracatu, frevo, dança do boi, Capoeira, e todo um gestual de longa pesquisa, desfrutado em coreografias e dramatização.
A concepção, direção e atuação de CUNHA, é reverberada em explosão muscular, coreografias calcadas no seu vigor físico, emocional, em um esgar de corpo, preparado em desenhos simples, com força teatral, colocando às danças populares em fulgurante importância. Explora nossa cultura folclórica nordestina em desenlace com enorme fluir.
As questões corpo/mente, sociais/exclusão, e com presença intensa do espiritual, enfocando várias religiões, com sensações, dores, aproximam e unem, com usufruir/posse, seu mergulho de beleza expressiva, fruto do trabalho em sua trilogia.
O videografismo de GUTO NETO se coloca com afluência num adaptar perfeito na intersecção com as várias linguagens expostas. Uma importante junção teatro/cinema/dança, conta parte da história do BISPO através das imagens projetadas, com atuação em vídeo de MARCIO CUNHA e ARLINDO, no espaço da colônia.
CACAU GONDOMAR realiza uma direção de produção além do esmerado. Vocação em favor do concretizar artístico.
O desenho de luz de JUCA BARACHO é de minúcia genial, dando cintilância ao investigar coreográfico, na imersão de entrega físico/emocional de "ROSÁRIO".
ANTONIO NÓBREGA sacraliza em sua trilha sonora toda a religiosidade impregnada, ao desfiar/destrinchar, com músicas do nosso cancioneiro nordestino. Funciona como uma poderosa/abundante oração, que abrange um pouco de cada crença religiosa. Comunhão total com a beleza cênica da cenografia/ instalação. Artistas e técnicos comungam no mesmo caminho, em proposital e ardiloso interagir com o público.
"ROSÁRIO" é uma oração cênica de intencional espiritualidade/discursão/criação/arte, se utilizando corporalmente em dança cristalizada e apoiada em múltiplas linguagens, de finalização memorável, em destemido ousar cênico.
Um documentário corajoso, dançado, interpretado, de obras artísticas, em corpo, alma, religiões e movimentos esculpidos, descortinados com o "Manto Sagrado", à vida e o legado de ARTHUR BISPO DO ROSÁRIO.

Espetáculo NECESSÁRIO.

Espetáculo: "ROSÁRIO"

RECONSTRUINDO O MUNDO, ENTRE O DELÍRIO E A ARTE. CRÍTICA DE WAGNER CORRÊA DE ARAÚJO NO BLOG DE ÓPERA & BALLET.

julho 02, 2018

Se ao ex-fuzileiro e ex-pugilista sergipano Arthur Bispo do Rosário coube, segundo o próprio,  reconstruir o mundo, e atuar como advogado dos homens no Juízo Final,  sua longa e sofrida noite de meio século, como um interno esquizofrênico, encontrou a saída na salvação pela arte.

 

E ao seu legado de criador espontâneo e instintivo coube um destino estético que o identificou com a vanguarda através de suas assamblages,referenciadas até a Marcel Duchamp, com prática e inspiradora base nos materiais de uso cotidiano em sua residência / manicômio (Colônia Juliano Moreira).

 

Capazes no post-mortem de serem levadas à Bienal de Veneza na representação brasileira, integrarem acervos museológicos e mostras internacionais, além de despertarem inúmeras releituras de sua arte/vida, do teatro ao cinema, sem esquecer a dança e as performances plástico/visuais.

 

Estas últimas com um forte substrato que, sempre, as aproxima ora do encantamento ritualístico artaudiano, ora às vivências psicofísicas bauschianas. O que se  torna de potencial percepção nos traços de originalidade inventiva que o múltiplo  talento do artista plástico, ator e bailarino Márcio Cunha vem imprimindo às suas incursões plásticas / espetáculos coreográficos no tríptico Frida, Basquiat e, agora, Rosario.

Numa autoral pulsão integrativa de elementos da dança, da performance teatral e do processo das instalações, outra vez com prevalência em energizada imersão física e psíquica de seu idealizador e intérprete na trajetória de outro artista, este brasileiro e  marcado pelos signos da marginalidade, da exclusão, da solidão e das limitações corporais de um prisioneiro da alienação.

 

Aqui, o Bispo do Rosário é revivido num suporte cenográfico (Márcio Cunha/Silvia Araujo) interativo, dos estandartes, barcos de madeira, faixas, uniformes, o manto da consagração e canecas, a um atelier miniaturizado com objetos domésticos e imaginária sacro/profana. Na climática ambiência luminar (Juca Baracho) e na envolvência do score sonoro/musical (Antônio Nóbrega).

 

Enriquecido, sobremaneira, na participação de Arlindo, ex interno da Colônia e também artista,  através de barco de sua lavra, e na sua episódica interação cênica com Márcio Cunha, de rara emotividade palco/plateia ao possibilitar a progressão dramático / coreográfica , entre o onírico e o verismo, entre  a irracionalidade e o êxtase poético.

 

O que leva, ainda, a uma sensorial sintonização reflexiva da representação com a dúplice genialidade arquetípica da loucura, ligando a postulação redentora de Artaud (Tenho uma única preocupação: refazer-me) à auto – divinificada missão de Bispo do Rosário no querer “Reconstruir o mundo...Isso é a minha salvação na Terra"...

Espetáculo: "ROSÁRIO"

Crítica: RENATA REINHEIMER - 2018

 

Rosário
Este é o nome do trabalho que me arrebatou ontem à noite!
Márcio Cunha
Este é o nome do amigo e parceiro que escolhi (ou o Universo escolheu) para estar junto.

Amigo, fiquei imensamente feliz de ver o resultado desta intensa, forte e profunda pesquisa. Para mim, ali, na cena, ontem, seu trabalho assentou! Vi muito além do Bispo do Rosário, vi muito além de uma contação de história, vi muito além dos objetos em cena, vi muito além da movimentação (literal ou não).
Vi você! Vi você no seu tempo! Vi o tempo esgarçado, vi o tempo acontecendo no enquanto, vi o enquanto me envolvendo.
E me vi ali, junto!
Rosario não é o resultado de uma grande pesquisa sobre o Bispo. Rosario é o resultado de toooooodo o seu processo. É resultado de 17 anos de suor, de movimento, de pensamento, de questionamentos e afetos..e que belo resultado!
O mais incrível é pensar que ao mesmo tempo que ele é resultado disso tudo, é pensar que ele tb é processo do que vem pela frente...
Acabo este texto curiosa com o que está por vir....
Parabéns amigo! E todos tenham a oportunidade de te ver em cena!
Obrigada pela experiência!
Descer a serra valeu muito a pena!

Espetáculo: "ROSÁRIO"

Crítica: Márcio Cunha prova maturidade artística ao mergulhar no universo do Bispo do Rosário

POR ADRIANA PAVLOVA - 27/06/2018

RIO — Depois de um início de temporada dos mais mornos, até que enfim a programação de dança esquenta na cidade. E boa parte desse feito se deve à iniciativa do Sesc com o projeto “EntreDança 2018”, em cartaz em diferentes palcos.

No Sesc Copacabana, até domingo, o coreógrafo e bailarino Márcio Cunha apresenta o solo “Rosario”, mais um experimento seu a partir de personalidades das artes visuais. Depois de Frida Kahlo (“Frida-me”, em 2014) e Jean-Michel Basquiat (“Céu de Basquiat”, em 2015), a trilogia se completa com Cunha mergulhando no complexo universo artístico e mental de Arthur Bispo do Rosário.

E, pelo que se viu na estreia, trata-se de uma imersão ainda mais profunda e intensa do que as anteriores. Isso se deve, muito provavelmente, à residência realizada pelo coreógrafo no Museu Bispo do Rosário, na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, antigo hospital psiquiátrico onde Bispo ficou internado mais de 50 anos e onde concebeu sua obra artística.

Cunha usa seu talento de artista plástico para recriar obras das personalidades que o movem a cada empreitada coreográfica. Criações que tanto servem para aproximá-lo destes nomes da arte como para tomar a cena do espetáculo. As peças, feitas em parceria com Silvia Araujo, estão espalhadas pelo palco quando o público entra na sala, e é o próprio bailarino que convoca a todos para um passeio entre as criações. Bispo está lá no manto, no paletó bordado com palavras e numa delicada miniatura reproduzindo o ateliê do artista. Um pequeno barco de madeira assinado por Arlindo — ex-interno, ainda morador da colônia e principal interlocutor do coreógrafo — completa o cenário.

Cunha veste em cena um figurino aludindo à roupa usada por pacientes hospitalizados (calça e blusa verde claro) e, finalmente, começa sua dança, que mostra diferentes facetas da história de vida de Bispo do Rosário. Ao som de uma trilha assinada por Antonio Nóbrega, o bailarino passeia por danças típicas do Nordeste, onde Bispo nasceu (às vezes, um pouco literais demais, com a movimentação ilustrando as letras das músicas), para depois, já vestido com um manto, tornar sua coreografia mais complexa, revelando as fragilidades de um corpo tomado por sonhos e delírios. Um filme feito durante as pesquisas na Juliano Moreira invade o palco e toma a parede central, no fundo da cena. Ali, Cunha interage com Arlindo, o mesmo senhor que assina o barco do cenário, numa espécie de fantasmagoria do próprio Bispo.

Na estreia de “Rosario” para convidados, Arlindo, que estava na plateia, postou-se ao lado de seu barco-cenário e ali ficou durante toda a apresentação. Em certos momentos, aproximou-se do bailarino e até interagiu com ele, desencadeando uma interessante experiência entre realidade e ficção para o público, que desconhecia se a intervenção havia sido roteirizada ou não. A dança transformou-se em performance. Márcio Cunha encarou o desafio e improvisou, numa boa prova de sua maturidade artística. Fica agora a vontade de vê-lo de fato numa cena ainda mais livre.


Espetáculo: "Frida-Me"

Crítica: TAYIO JEAN OMURA- 2015

Quando subi a escada para o mezanino, em fila, chegando no hall antes da porta já havia uma camada de fumaça no ar. Aquilo pegou a minha atenção, ou sensação, de forma que pra mim a performance já tinha começado. O mais difícil foi se desvencilhar das imagens, dos sons, das estórias que já carregamos desses artistas míticos, como você coloca. Em sua dança, olhando em retrospectiva, me parece que o ideal é ir aberto, até mesmo sem conhecer o artista. Há, talvez, uma certa expectativa de ver certas imagens, que já trazemos. Mas o Frida-me me lembrou de novo (coisa que o Corvos e Girassóis também tinha feito) que é sempre um encontro entre o Márcio (e no caso a Ana) com a Frida. E o que temos é um encontro com esse encontro. Não um encontro com Frida. O “me” do Frida-me parece dizer em inglês isso – Frida-eu. Quando a porta do teatro se abriu, veio um som, um ruído contínuo, e que me chamou a atenção também. Das suas danças, me parece a que mais explora algo no som. O que nos outros espetáculos – tela, vermelho, fase, corvos... - era mais 'tradicional', até clássico na música, agora no Frida-me pareceu mais experimental. Me pareceu que o som dançou mais também. Entrando no teatro, que estava lotando de gente, havia bem mais fumaça, uma atmosfera algo uterina. As tranças, tripas, bonecas, caveiras, cadeiras. A cor vermelha do sangue. Ana lá atrás do vestido. Sentei do lado esquerdo do público, no nível do chão. Dali, dava pra ver por uma fresta na cortina uma figura que passava de um lado pro outro. Talvez você Márcio. E pra mim, aquela movimentação já me causava coisas. Ansiedade talvez. Você também costuma começar suas danças com o espaço para ser andado pelo olhar, pela imaginação. Acho isso muito importante. É um espaço vivo que se cria, e quase podemos sentir tudo o que já passou por ali. Está plasmado lá. Em energia. Em suor. Em calor humano. Mesmo sendo uma noite razoavelmente fria lá fora, dentro daquele espaço, havia algo quente de útero. Algo que ia nascer ali. A luz apaga, e volta, e lá aparece você na cadeira. Ana sumiu. Gosto dessa mágica. Era preciso mesmo explorar a mágica, o sumir o desaparecer, o diminuir, o multiplicar, como diz o Alejandro Jodorowsky – estender a imaginação através dos quatro operadores básicos da matemática : somar, subtrair, multiplicar, dividir (um homem com 2 cabeças, uma mulher sem cabeça, uma mulher com 12 úteros, mãos e pés com vida própria)... Novamente o som. Usar guitarras distorcidas, trabalhar com o ruído, batidas graves, embaralhamento de sons, foi algo diferente do que vi nas outras danças. Há talvez uma relação aí entre cordas tensionadas que gritam. Cordas vocais, tranças, cordas da guitarra. Se o corpo abria a boca, numa careta macabra, e o grito era o silêncio, o som da trilha era o contrário – um silêncio cheio de corpo, que abria uma careta invisível. E era possível viajar também nos gestos. A primeira série de gestos, ainda ali sentado na cadeira, abriu um surrealismo diferente para mim. Principalmente com algo que você fazia com os dedos, um movimento minhocado bem diferente de ver. Era possível viajar também nesses dois corpos. Quem era Ana, quem era você? Havia um teatro ali, estórias. Poderíamos ficar viajando na estória pessoal da Frida, coisa que fiz no começo, mas depois preferi viajar em outras coisas. O som do bonde, do acidente, as imagens de transtorno da Frida... um desejo suicida?... Gostei de ver a boneca. Era importante mesmo aquele momento. A gente consegue sentir a busca por uma dança que passe por diversos momentos e sentimentos e sensações. Não ficar tão dentro de só um deles. Marcar momentos e espaços. Variações dramáticas. Fiquei pensando sobre a luz nos quadrados. Em como dava um aspecto de jogo nos momentos de rock pesado e dança mais violenta. Quando os quadrados piscavam. Algo como um jogo de tabuleiro. Sim, talvez seja isso, talvez esses quadrados marcados tenham me lembrado de jogos de tabuleiro. Havia mais estórias ali. Mais cenas. Mais teatro. Talvez foi o trabalho da respiração que deixou isso mais claro. O trabalho das expressões do rosto. Às vezes me canso da cara 'neutra' que vemos na dança contemporânea. Mas em Frida-me vocês exploram outra coisa, mais interessante. Parece que se passeia por momentos da vida, por quadros de Frida. Mas principalmente se vê a imagem de um artista se jogando num abismo de momentos da vida e de quadros de Frida. Esse se jogar continua, e parece que você já o adotou como princípio, processo, lema, método, inspiração: dar as mãos sem medo da morte. A Ana me pareceu muito contente de estar ali dançando. Estava completamente entregue. Foi uma feliz revelação, afinal, fomos colegas numa aula da Unirio, e achei-a muito divertida e talentosa já na ocasião. É sempre bom ver uma dança sua, ainda mais depois de um bom tempo sem te ver. Porque é sempre diferente, e sempre o mesmo. Sempre uma repetição diferente do mesmo abismo. Não é Van Gogh, nem Klimt nem Frida, é sempre Márcio, e nunca é Márcio. É isso que eu gosto das suas danças. É cair no abismo junto contigo, naquele momento. Bela dança, bela equipe, bela parceria, a Ana é linda mesmo, que espírito! Fico esperando já o próximo... e nunca é o artista que imagino. Assim é melhor.

Espetáculo: "Céu de Basquiat"

CÉU DE BASQUIAT : ELEGANTE BRUTALIDADE. CRÍTICA DE WAGNER CORREA DE ARAUJO NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.

agosto 16, 2016

O descendente porto-riquenho/hatiano, inicializado de poeta adolescente a performer underground, entre o hip hop e o grafite. Da exclusão social  racista à marginalização dos  drogados, o títere da rebeldia com causa ou da visceral  contestação ideológica.

 

Entre a solidão e a fama, assim foi  a trajetória de Jean-Michel Basquiat,de criador e de criatura, do êxtase à trágica finitude. Na overdose suicida de speedball ((heroína+cocaína) aos 28 anos ,na instantânea ascensão ao céu da arte americana anos 80.

 

Parceiro artístico de Vincent Gallo, Andy Warhol e Keith Haring,idolatrado por David Bowie, amado por Madonna. E que,depois de ser tema dos filmes de Julian Schnabel (Traços de Uma Vida) e Tamra Davis( Radiant Child), foi capaz de sugestionar a singular performance coreográfica /teatral brasileira  Céu de Basquiat.

 

Inspirado nos traços existenciais e artísticos de Basquiat, o artista plástico, performer e coreógrafo Márcio Cunha comemora, agora, seus quinze anos de incursões cênicas .  E priorizado,ainda,na sequencial irmandade de mestres das cores e pincéis(Taizi Harada>Botero>Van Gogh>Klimt>Frida Kahlo), sem esquecer os grafiteiros pátrios e a si próprio como desenhista.

 

Ser introduzido na instalação plástico/cenográfica de sua lavra é o primeiro encantamento da concepção dança/teatro/performance solo de Márcio Cunha. Com iluminadas  parcerias artísticas( Ana Paula Bouzas/Alice Bernanrdi/Juliana Nogueira/Micheline Torres/Mariana Bernardes Baltar).

 

Onde, entre reproduções e recriações de Basquiat, desde painéis/posters a objetos cotidianos, sob luzes ambientalistas (Juca Baracho) e acordes incidentais jazzísticos, pops e sacros, está metaforizado o universo de um ‘jovem artista negro num mundo de arte branco”.

 

Movimentos livres, incisivos, diretos, com força maior no improviso criativo que no ato coreográfico, numa identificação com a proposta através de um vocabulário assaz personalista .

 

Incorporando  elementos visíveis da obra de Basquiat como luvas de boxe, coroas , aureolas,chapéus,cadeira/trono, signos gráficos  que o intérprete  transmuta  em seu corpo que é, assim, módulo,suporte,tela, mural, calçada, portal.

 

Sujeito-objeto ressignificando a gestualidade de seminal brutalização num experimentalismo formalmente arrojado. Capaz,mesmo em sua densa ritualização de pesadelos e opressões, de impulsionar uma envolvência sensorial do espectador.

 

Pois é, afinal, enquanto artista e personagem, que Márcio Cunha provoca com sua dramatização coreográfica , irreverente e insólita , um jogo cênico vivo e instintivo nesta predestinação  ao Céu de Basquiat.

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